Jussara Lucena, escritora

Textos

A cidade dos vivos

Fernando precisava encontrar respostas. Depois de tanto tempo, uma tênue luz de esperança surgia, estampada numa amarelada página de livro. Ele sempre cumpria o ritual de abrir a caixa de correspondência assim que chegava do trabalho. Sempre acreditou que algumas delas chegariam por ali.
Um pacote, perfeitamente dobrado, protegia o livro. Não havia identificação de remetente, apenas o seu nome escrito com a ajuda de um normógrafo. Guardou o papel de embrulho. Quem sabe descobrisse mais alguma pista sobre a misteriosa remessa.
Estampado na capa preta e dura, em letras douradas, o título: Cemitérios, memórias e ligações. Abriu rapidamente. Na leitura das primeiras páginas não compreendeu como um texto maçante poderia lhe ajudar. Deixou-o de lado por um instante. Precisava de um banho e de algo para comer.
Na cozinha, começou a preparar um sanduíche. Para diminuir um pouco da solidão ligou a TV no exato momento em que era exibido um documentário sobre a simbologia e os valores sociais dos cemitérios. Seria coincidência, ou o destino tentava lhe dar algum aviso. No encerramento, o narrador afirmava: “Os túmulos são uma forma de assegurar a imortalidade, são lugares de preservação da memória por excelência”. Ele precisava continuar a leitura do velho livro.
O texto descrevia cemitérios de diversas cidades espalhadas pelo mundo, citando nomes de pessoas, detalhes de mausoléus e também de túmulos simples. Em determinados trechos havia algumas curiosidades, porém tudo sem muito significado para ele. Cansado, cochilou na poltrona. Acordou com o barulho do livro que caíra de suas mãos.
O livro estava aberto em uma página, próxima do final, descrevendo um cemitério de uma cidade não tão distante de onde morava. Ao final de uma das páginas, uma seta apontava para o primeiro nome de uma das primeiras pessoas sepultadas, segundo o registro da municipalidade: Victor.
O nome lhe trouxe lembranças. Dona Gertrudes, a cuidadora mais antiga do abrigo que frequentou, algumas vezes o chamava de Victor, depois corrigia, já que não havia nenhum Victor no lugar. Questionou-a algumas vezes e ela respondia tratar-se de um sobrinho, muito parecido com ele.
Desistiu da leitura, procurou por mais alguma marcação. Em uma das páginas, antes daquela com o nome, encontrou mais uma palavra indicada por uma seta: procure.
“Procure Victor!”, repetiu várias vezes em voz alta.
Intrigado, fez algumas ligações, remarcou compromissos. Na manhã seguinte, pegou a estrada rumo ao interior.
No caminho, quando lembrava do livro e da sugestão de procura por Victor, pensou no abrigo onde ficou até a saída para a Universidade. Nunca entendeu porque ficou tanto tempo por lá, várias crianças foram adotadas. Ele, um menino comportado, de boa aparência e inteligente não teve a mesma sorte. Dona Gertrudes era rude, mas parecia ter um pouco mais de atenção com ele do que com os demais abrigados.
Chegou ao lugar no início da noite. Passou em frente ao cemitério. Os muros altos não permitiam a visão de todo o conjunto, mas podia perceber pela imponente portada e pelas construções funerárias avantajadas o contraste entre o cemitério e a estrutura da pequena cidade histórica, tal qual relatada no velho livro recebido.
No hotel, pediu informações sobre o cemitério. O jovem recepcionista fez questão de contar-lhe algumas das histórias das visões assustadoras tidas pelos moradores nos arredores do cemitério. Pela quantidade de causos contados, o campo santo parecia existir mesmo antes da fundação da cidade.
– Quem é a pessoa que mais conhece as histórias do velho cemitério? – perguntou Fernando.
– O Osorinho, o ‘sepultador”. Ele é filho do antigo coveiro. É formado em história! Diz que quem observa o cemitério, conhece a história da nossa cidade. Se é algum defunto que procura, com certeza o Osorinho é a pessoa certa.
Na manhã seguinte, chegando ao cemitério, procurou por Osorinho. Não o encontrou num primeiro momento. Resolveu caminhar pelo cemitério.
Como na maioria deles, as formas das construções e seus adornos variava conforme a época em que foram construídas. Em primeiro plano, os grandes mausoléus das famílias mais abastadas e influentes. A medida que se afastava, túmulos mais humildes povoavam o lugar. Observa as lápides, as fotografias e as datas nas inscrições. Naquela manhã, muitas pessoas circulavam por lá. Faziam turismo, como descrito no documentário da TV.
O sol aquecia a manhã e encontrar uma sombra não estava fácil. Avistou o local onde dois homens erguiam um pequeno jazigo. Lá com certeza poderia matar a sede.
Quando se aproximou e cumprimentou os dois, um dos pedreiros se virou e logo que olhou para Fernando deu um salto de espanto.
– Me desculpe, não queria assustá-los!
– Perdoe o meu amigo, ele não gosta de cemitérios. Tem medo de almas penadas.
– Mas eu estou bem vivo!
– Não tenho tanta certeza, já vi esse seu rosto numa fotografia neste cemitério!.
– É mesmo? Onde?
– Não me lembro, são muitos túmulos!
Fernando não levou o susto e a informação do homem a sério.
– Posso beber um pouco de água?
– Claro, mas tem que ser direto da torneira!
– Onde encontro o Osorinho? – perguntou, secando os cantos da boca.
– Ele foi buscar uma caixa no depósito. O senhor pode esperar por ele na capela.
Fernando buscou um dos bancos e sentou. Logo depois, um grupo de senhoras chegou e começou a rezar. Mais uma vez vieram as lembranças do abrigo, onde toda quarta-feira, cuidadores e abrigados se reuniam para o terço. Numa das noites, depois da oração, perguntou a Dona Gertrudes sobre seus pais. Ela hesitou por alguns instantes e disse que ele havia chegado muito pequeno, numa caixa de papelão deixada na porta da instituição.
Ele foi para frente da capela. Observou um homem que beirava os sessenta anos e que se aproximava a passos lentos.
– Boa tarde! O senhor é o Osorinho, o sepultador?
– Sepultador e historiador! Posso ajudar?
– O senhor talvez ache muito estranho, mas preciso lhe mostrar um livro antigo.
– Não há nada melhor para um historiador que a oportunidade de ter acesso a um livro.
O homem que ficou maravilhado com tudo que via.
- Estou me imaginando circulando por cada um desses cemitérios. Sabia que cemitérios são as cidades dos vivos?
– Sempre os imaginei como as cidades dos mortos! – afirmou Fernando.
– Os cemitérios foram concebidos para eternizar as pessoas. Enquanto são lembradas, continuam existindo. Quem não quer ser lembrado? Cemitérios são o elo, a ligação entre o passado e o presente.
– Ligação entre o passado e o presente? Talvez seja esse o objetivo da mensagem.
– Que mensagem?
– Veja, aqui nessas marcações! Juntando as duas temos “Procure Victor!”.
– Quem é Victor?
– É o que pretendo descobrir. O senhor tem uma lista das pessoas enterradas aqui?
– Tenho. O senhor acredita que encontrará Victor entre os mortos?
– Foi minha primeira ideia. O que mais eu buscaria num cemitério?
– Memórias. Os cemitérios podem parecer silenciosos, solitários, mas estão repletos de vozes que querem ser ouvidas! Tem um sobrenome?
– Azevedo. Fernando Azevedo.
– Não o seu, o do tal Victor que procura?
– Infelizmente, tudo o que tenho é o que está no livro.
– Sem um sobrenome, sem uma data de nascimento ou da morte, vai ser um pouco mais difícil. Volte aqui amanhã e traga um par de tênis!
No dia seguinte, Osorinho tirou do bolso uma lista com mais de duzentos nomes.
– Procurei nos nomes compostos também. Victor pode ser inclusive sobrenome. O que vamos procurar no túmulo desse Victor?
– Não faço a menor ideia, mas algo me diz que saberei, quando encontrar.
Foram longas horas de procura e não surgia nada. A lista encerrou-se.
– Obrigado pela ajuda. Apenas tomei o seu tempo.
– Não se preocupe, aprendi ainda mais com a procura. Aprendo com a morte e com a vida no cemitério. Às vezes me envolvo com os fatos, com as pessoas que passam e com as que ficam por aqui. O cemitério não é assustador.
– Não para todos. Ontem, um dos pedreiros ficou branco como cera quando me viu. Disse que eu era uma das pessoas na fotografia de um dos túmulos.
– Espere aí. Olhe para mim, sem sorrir, com ar sério.
– Quer que eu faça pose para uma imagem mortuária?
– Ele tinha razão. Também já vi o seu rosto, melhor, um rosto parecido. Deixe-me pensar um pouco... já sei. Estivemos procurando entre os mortos. Talvez fosse melhor buscar entre os vivos.
– Não estou entendendo!
– Espere, já está escurecendo. Preciso fechar os portões e apanhar uma lanterna.
Osorinho voltou pouco tempo depois com olhar confiante. Seguiram na escuridão.
– Havia um casal. Enterrei os dois. O homem morreu dois dias após a morte da esposa. Passaram a maior parte da vida deles procurando um filho desaparecido. O garotinho tinha dois meses de idade quando foi levado por uma baba. Nunca mais ninguém teve informações sobre ela ou da criança.
Osorinho parou em frente ao mausoléu, iluminou a construção de forma geral, depois mirou nas fotografias nos tampos das gavetas. Primeiro na fotografia da mulher, que aparentava pouco mais de cinquenta anos. Paula. Depois para o homem. Fernando não acreditou. O sujeito na fotografia em muito se parecia com ele, não fossem as costeletas compridas e o encaracolado no cabelo. Carlos Neves.
O mais curioso foi encontrar uma terceira gaveta, sem fotografia ou datas, apenas um nome. Victor Neves.
– Há alguém aí dentro?
– Não. Alguns meses antes de morrerem, construíram o jazigo. A terceira gaveta reservaram para o filho. Não o encontraram em vida, mas tinham esperança de que o filho os encontrasse algum dia. Lembra-se, tudo feito para a continuidade? Todos aqui formam uma família. A família daqueles que não querem ser esquecidos.
– Pode ser só uma coincidência.
– Há alguma lembrança de infância, algo que o ligue ao nome Victor. Sabe quem lhe mandou este livro?
– Passei boa parte da minha vida num abrigo para órfãos e abandonados. Dona Gertrudes era a figura mais próxima de uma mãe que eu possuía. Espere! Algumas vezes ela se confundia e me chamava Victor. O nome do sobrinho dela.
– Talvez seja interessante voltar lá e tirar algumas dúvidas!
– É o que vou fazer. Obrigado Osório!
– Me dê notícias, se encontrar o que procura.
Quando Fernando chegou ao abrigo, descobriu que Dona Gertrudes havia morrido dois dias antes dele ter recebido o pacote com o livro. Pediu licença ao zelador e foi até a oficina onde encapavam os cadernos dos abrigados. Lá encontrou um rolo com o mesmo papel que embrulhara o livro recebido.
Havia uma pessoa que talvez pudesse lhe dar mais algumas informações. A antiga diretora, a Dona Gessy conhecia Dona Gertrudes muito bem. Foi até a casa dela.
A mulher, presa a uma cadeira de rodas, não se mostrou surpresa com a visita.
– Encontrou Victor? – Foi a primeira pergunta que Dona Gessy fez.
– Foi a senhora quem me enviou o livro?
– Não, mas Gertrudes me confessou que havia enviado.
– Dona Gessy...
– Sei qual a sua próxima pergunta. Sim você é Victor Nunes. Não foi Gertrudes quem lhe tirou dos seus pais. Ela era minha irmã. Eu, a sua babá, Victor. Logo depois que o trouxe comigo, para ocupar um pouco da minha vida vazia, conheci um homem. Ele não gostava de crianças. Então, pedi para Gertrudes que cuidasse de você. Ela aceitou, para proteger a irmã do crime que cometeu. Hoje sou só uma velha, não tenho como compensar o erro que cometi e não sou alguém por quem valha uma vingança.
– Não penso em vingança. Com certeza a sua vida foi mais triste que a minha. A senhora tem mais alguém, algum parente?
– Não. Enquanto ainda me resta o dinheiro da pensão, tenho a cuidadora como companhia.
– A senhora sabia que os cemitérios abrigam algumas vozes que não podem ser ouvidas?
– Claro! Estão todos mortos.
– Não, a maioria vive enquanto são lembrados e suas vozes são ouvidas por aqueles que sabem ouvir. O que a senhora terá para dizer? Quem estaria disposto a ouvi-la? É triste
Ainda no portão da casa de Gessy, Fernando fez uma ligação telefônica:
– Querida, aquela proposta de casamento continua sendo aceita se nos mudarmos para uma tranquila cidade do interior?

Texto selecionado em Concurso realizado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), Pró-Reitoria de Extensão e Cultura, publicado na Coletânea de poesia, cordel, contos e crônicas do IFPB.

Adnelson Campos
26/03/2022

 

 

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